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O risco da inteligência artificial e o erro na Arte

Não são poucas as obras inacabadas, rejeitadas, criticadas (inclusive, por quem as criou) que viraram obras-primas de certos artistas.

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 22 de janeiro de 2024 às 10:34

Mussorgsky escreveu sua grande obra, a ópera Boris Godunov, em duas versões. A primeira chegou a ser censurada, não indo à cena. A segunda, concluída em 1872, estreou em 1874 com estrondoso sucesso.

Não foi o suficiente para que Rimsky-Korsakov depois fizesse correções e revisões da obra. Na verdade, Mussorgsky teve boa parte de sua obra corrigida e revisada depois, por conta dos seus problemas de composição e orquestração.

E foi assim que durante todo o século XX a ópera foi encenada; corrigida e revisada.

Acontece que resolveram recuperar a versão selvagem, “errada”, troncha, irregular de Mussorgsky. Para a maioria, estava ali uma força, uma modernidade, uma ousadia e tensão muito mais interessantes do que a correta, polida e ajustada versão de Rimsky-Korsakov. E assim a versão original voltou a ser mais tocada e encenada dois séculos depois.

Não são poucas as obras inacabadas, rejeitadas, criticadas (inclusive, por quem as criou) que viraram obras-primas de certos artistas.

Shakespeare foi considerado um bárbaro, rejeitado por um bom tempo, por conta de sua dramaturgia “errada” depois de sua morte (e do sucesso em vida, diga-se de passagem), até que o pessoal do Sturm und Drang viu nele um gênio, mas de 150 anos depois.

Kafka mandou queimar sua obra e morreu sem terminar seu incrível romance O Castelo; que, mesmo inacabado, segue sendo um dos grandes romances da humanidade.

Byung-Chul Han, em seu notável livro A Crise da Narração, fala sobre a Inteligência Artificial dizendo que inteligência não é espírito. Ele diz que “a teoria na forma de desfecho prende as coisas em uma estrutura conceitual e as torna, com isso, apreensíveis”.

O big data pode recolher dados suficientes para que se construa um roteiro apreensível ideal de uma série, posto que as séries são feitas de fórmulas; é tudo estudado, analisado, baseado em teorias, regras e modelos. Mas faltaria-lhe o espírito, como diz Han.

E o espírito erra; erra no sentido do erro, mas também de errância. A perda da capacidade narrativa é também a perda da capacidade de errar por caminhos tortos, nebulosos, inexplicáveis aonde nos levam a narração.

Esses caminhos pressupõem não somente a capacidade subjetiva, diversa, difusa, particular, estranha do espírito, mas, também, seu erro.

Eu não conheço nenhuma obra de arte perfeita. Sou capaz de identificar problemas, “barrigas”, detalhes incômodos ao meu olhar, nas obras que mais amo.

E elas só teriam se transformado nas obras que mais amo, arrisco a dizer, porque tiveram esses erros.

Provavelmente, a correção, ajustada de prumo, a partir de certas regras, fórmulas, técnicas, teorias, poderiam ter levado, em seu conserto, as obras a caminhos totalmente desinteressantes de perfeição.

Porque, afinal, a perfeição é como uma utopia, ela não existe. E, provavelmente, se ambas existissem, transformariam tudo em algo tedioso.

Stravinski compara, em seu livro Seis Lições Sobre Poética Musical, a facilidade de criação de melodias de Bellini com a tremenda dificuldade, comprovada nos diversos rabiscos, rasuras e anotações, de Beethoven.

No entanto, as melodias do segundo estão entre as mais belas e lembradas de todos os tempos. Provavelmente, a partir de regras e fórmulas, Beethoven teria chegado mais facilmente a determinadas melodias, mas não teria chegado aos seus últimos quartetos ou suas sonatas para piano.

A objetividade da inteligência artificial não a faria caminhar pela hesitação, pelo erro, pela dúvida, que geralmente são os instantes de criação de onde partem os grandes gestos dos grandes artistas.

A busca por regras, fórmulas e técnicas, baseando-se em dados, em algoritmos, em estatísticas, daria um caminho mais fácil, lógico e correto para a inteligência artificial. E, por isso mesmo, muito mais desinteressante.

Se as fórmulas de McKee e Field para a construção de roteiros fossem tão efetivas e ideais, teriam eles mesmos feito os melhores roteiros cinematográficos de todos os tempos.

A enxurrada de dinheiro que roliúde põe em fracassos de bilheteria também passa pela contratação dos melhores roteiristas possíveis, da melhor equipe.

Teoria é boa para ser lida.

Fórmula é boa para remédio.

Técnica é boa quando é apreendida e esquecida.

A inteligência artificial não sabe disso, e nem poderá saber. Ela sempre vai precisar de dados, estatísticas, fórmulas.

O cinema é sempre um ótimo exemplo, porque a maioria absoluta dos grandes filmes tensionou a forma “correta” de fazê-los. E, quase nunca, suponho, porque artistas queriam mostrar sua segura e certeira genialidade em subverter as coisas, mas porque são humanos, frágeis, erram e arriscam sem saber se vai funcionar.

Numa das preciosas e seguidas conversas que tive com José Eduardo Agualusa, quando da minha curta temporada em Angola, falávamos sobre erros e acertos na arte, algo próximo do assunto da presente coluna.

Falei-lhe então de um filme que, se fôssemos, com as lentes dos sabidos, técnicos e teóricos, analisar, seria um filme onde nada se salvaria. Do roteiro à fotografia. Da edição à interpretação da maioria dos atores. E, no entanto, era um filme que eu amava.

Bye Bye Brasil.

Agualusa se levantou, emocionado, e disse que era o filme de sua vida, e me pediu um abraço.

Ambos ficamos emocionados.

Pois é, taí duas coisas que a inteligência artificial também não consegue: abraçar e se emocionar.

Talvez, a inteligência artificial ameace artistas que usam fórmulas, técnicas, teorias, para fazer uma obra funcional, que dê certo, que esteja num padrão de sucesso e êxito. A discussão e a preocupação são válidas, não nego.

Mas a Arte, assim, com letra maiúscula, não tem como ser ameaçada pelos cérebros eletrônicos da modernidade.

Ainda são, hoje e sempre, os cérebros humanos, ou a falta de uso inteligente, sensível e delicado desses cérebros nossa eterna e recorrente ameaça.

E ao final a Arte sempre tem vencido, mesmo com a derrota de muitos artistas.

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